Por Francisco Cunha Souza Filho
Assim como no âmbito pessoal, relações jurídicas empresariais foram amplamente afetadas pela pandemia. Abordaremos duas questões envolvendo o espectro corporativo e como a pandemia os afetou.
Situação de empresários, comerciantes, lojistas
Em decorrência dos reflexos da pandemia da covid-19, lojistas viram seu faturamento praticamente zerar.
Com as lojas e o comércio em geral fechados por decisão de política sanitária, inúmeras relações jurídicas inerentes ao setor se viram abruptamente suspensas, de reflexos econômicos ainda imprevisíveis, mas certamente em sua maioria se avizinhando desastrosos.
De outro lado, os locadores, sejam eles proprietários de lojas de rua, edifícios comerciais ou, mesmo, administradores de shoppings centers em sua grande maioria, se manteve unilateralmente a cobrança de alugueres e outras receitas, ainda que frustrada a contrapartida em face do fechamento desses espaços, ou significativa redução de fluxo.
Vejo aqui campo fértil para discussões, sejam pela via negociada, seja pela via judicial.
Tem-se que o vírus não é atribuível a nenhuma das partes, ou seja, nem ao lojista tampouco ao empreendedor: o primeiro está ressentido de qualquer fonte de receita, ante a ausência de vendas; o segundo, por óbvio, tem também seus custos fixos.
Como resolver isso nessa travessia transitória?
Abrem-se alguns caminhos possíveis, sob a ótica do lojista empresário, após fracassada negociação extranegocial:
Em primeiro lugar pode ser valer de uma defesa em ação de despejo ou cobrança que venha a ser ajuizada pelo locador, consistente na alegação de exceção de contrato não cumprido (previsto no art. 476 do CC), cabendo-lhe demonstrar que o empreendedor, ou seja, o dono do imóvel, não cumpriu sua parte na obrigação contratual e que tal risco, em relação ao aluguel, recairia sobre este (art. 113, § 1º, II, CC).
Nessa discussão entraria ainda o chamado dever legal e contratual do locador não apenas de assegurar o uso da loja (previsto no art. 22, II, da lei 8.245/91), mas, especialmente na hipótese dos shoppings, de obrigação inerente à criação de estrutura de prospecção de público, contrapartida imprescindível a que o lojista tenha capacidade de fazer frente às altas despesas cobradas pela administração.
Em segundo lugar pode o lojista eventualmente buscar a resilição do contrato, o fazendo com base na faculdade que lhe confere o art. 4º da Lei 8.245/91, buscando, ainda, que o seja sem pagamento de cláusula penal, por não haver “fato ou omissão imputável ao devedor” (na forma do art. 396 do CC), inclusive podendo o locatário, ai, valer-se da consignação em pagamento se houver recusa pelo locador no recebimento das chaves.
Tem o locatário o ônus de demonstrar o nexo entre a pretendida rescisão do contrato e o evento covid-19, ou seja, que dele decorreu a queda ou ausência de faturamento.
Em terceiro lugar, o lojista pode buscar a revisão judicial do contrato, o fazendo com base, sobretudo, em uma interpretação ampliativa do art. 317 do CC. A pretensão seria visando a revisão do contrato e do próprio negócio buscando suspender a exigibilidade de qualquer pagamento pelo locatário durante o período de fechamento.
A tanto, novamente impõe-se ao lojista o ônus de demonstrar a ausência da contraprestação que justificaria o pagamento do aluguel durante o fechamento, ou seja, o encerramento temporário de forma total da atividade.
Para a revisão acima comentada, também poderá ser utilizado como argumento o parâmetro da boa-fé objetiva e da racionalidade econômica, como antes já mencionado, pois dificilmente o contrato preveria, tampouco o locatário assumiria o risco de manter o pagamento de alugueres e encargos ainda que o estabelecimento comercial fosse fechado por conta de imprevisível pandemia de dimensão mundial.
Em quarto lugar, para a eventualidade de se entender inaplicável o art. 317 do CC, o lojista pode eventualmente buscar a revisão judicial agora com base no art. 422 do CC, de modo a afastar a exigibilidade de qualquer pagamento pelo locatário durante o período de fechamento do estabelecimento, afastando-se interpretação que exige, para aplicação do dispositivo, a circunstância de “extrema vantagem para a outra”.
Convém lembrar que, processualmente, a utilização das chamadas tutelas de urgência (art. 300 e seguintes do CPC) podem antecipar os efeitos da futura decisão, de modo a impedir o próprio perecimento do direito pretendido caso se aguardasse todo o tramite do processo.
Caso concreto
(1) Em decisão da justiça do DF, o lojista requereu a suspensão do aluguel e das taxas condominiais. Em caráter liminar (de tutela de urgência), foi deferido tão somente a suspensão da parcela fixa alusiva ao aluguel, ou seja, caso o lojista tivesse faturamento, a parcela variável ainda seria exigível.
Por fim, manteve o pagamento condominial. (Agravo de Instrumento 709038-25.2020.8.07.0001)
(2) Já a justiça paulista, em uma ação em que o lojista em um shopping center fechado pela pandemia pretendia a suspensão total dos alugueres, concedeu redução parcial destes com base no equilíbrio contratual. Foi estabelecida uma minoração em 50% no valor de locação de uma loja de jogos eletrônicos até a reabertura do comércio. (Agravo de Instrumento nº 2072891-87.2020.8.26.0000)
Suspensão das obrigações bancárias
Recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em processo ajuizado por um restaurante contra um grande Banco, a justiça deferiu tutela de urgência para suspender sumária e provisoriamente, por 90 dias, pagamentos de prestações de empréstimo tomado, ordenando, ainda, a liberação pelo banco das garantias oferecidas pelo estabelecimento na operação (no caso, recebíveis de cartão de débito e crédito), impedindo-o, ainda, de cobrar multa e encargos moratórios nesse período.
A decisão também determinou a liberação de aplicações financeiras mantidas pela empresa no banco, sob pena de multa diária de R$ 10.000.
O estado atual por que passa o Brasil, com a pandemia de coronavírus vitimando inúmeras pessoas diariamente e paralisando a atividade econômica nacional, com vários estabelecimentos fechados pelo obrigatório isolamento a evitar propagação da doença, mostrou-se claro indicativo da probabilidade do direito invocado.
Aliado a isso, observa-se que prévia notificação da empresa solicitando tal suspensão foi negada pelo banco.
A decisão foi baseada nos institutos do caso fortuito e da força maior. Justamente diria, sob nosso ponto de vista.
Ao contratar as operações junto ao banco o restaurante não tinha como prever a ocorrência de pandemia dessa envergadura, que o obrigaria a praticamente paralisar todas as suas atividades.
A decisão, ainda, considerou o perigo de dano ao eventual direito do restaurante, pois a não concessão da tutela pretendida, com imediata suspensão do pagamento das prestações, aliada à liberação da garantias, certamente acarretaria evidentes e sérios prejuízos à sua própria subsistência e manutenção, repercutindo ainda no quadro de seus funcionários, pois de uma hora para outra simplesmente deixou de faturar.
Daí ter o restaurante logrado suspender, por 90 dias, as obrigações assumidas anteriormente com o banco, levantando-se ainda as garantias prestadas nessa contratação, além da liberação dos recursos e aplicações financeiras lá mantidos pela empresa, visando a manutenção do negócio e, também, dos direitos de seus funcionários.
Conclusão
Sem, naturalmente, limitar-se a tais relações jurídicas, defensável então dizer que os contratos firmados antes da pandemia da covid19, em sua grande maioria, são suscetíveis de eventuais revisões, readequações, ou, mesmo, rescisões, a depender das especificidades de cada caso concreto, podendo assim se dar tanto pela via negocial como pela possível judicialização da questão.
Texto: Francisco Cunha Souza Filho (advogado)
Escritório Célio Neto Advogados: www.celioneto.adv.br
Foto: Personal Finance News
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